domingo, 29 de maio de 2011

Saque e destruição da Biblioteca de Bagdá

   Nos últimos dias recorri novamente aos textos de Alberto Manguel. O documentário No end in sight: the American occupation of Iraq (2007), de Charles Ferguson, reavivou em minha memória a triste sequência de violência e saques que ocorreram no Iraque após a queda de Saddam Hussein. Segundo o documentarista e também de acordo com Jon Lee Anderson, jornalista que estava em Badgá no período da ocupação das tropas da coalização,os fatos não deixam dúvidas: os responsáveis pela formação do governo de transição no Iraque, chefiados por Paul Bremer, não fizeram nada para evitar a violência que tomou conta das ruas da capital e se propagou para grande parte do território iraquiano.
   Os grupos reprimidos pela ditadura de Saddam Hussein, com ideologias opostas ou apenas com o desejo de chegar ao poder, iniciaram uma violência fratricida que causou a morte de muitos iraquianos, além de destruir grande parte do patrimônio histórico e cultural do país.


  Como fruto da violência instalada perdemos Sérgio Veira de Mello,um dos brasileiros mais brilhantes.Representante  do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Vieira de Mello foi incumbido por Kofi Annam de auxiliar na instalação do governo de transição, mas perdeu a vida em um atentado atribuído à Al Qaeda. 
 
A destruição da Biblioteca de Bagdá 
   Há ocasiões em que se permite que uma biblioteca desapareça. Em abril de 2003, o exército anglo-americano preferiu não fazer nada enquanto os Arquivos Nacionais, o Museu Arqueológico e a Biblioteca Nacional de Bagdá eram saqueados e pilhados. Em poucas horas, boa parte dos primeiros registros escritos da história humana perdeu-se no esquecimento. Os primeiros exemplos de escrita, datando de seis mil anos atrás; crônicas medievais que haviam escapado à pilhagem dos capangas de Saddam Hussein; vários volumes da refinada coleção corânica do Ministério de Assuntos Religiosos – todos desapareceram, provavelmente para sempre. Perderam-se manuscritos amorosamente caligrafados por ilustres escribas árabes, para quem a beleza da escrita devia espelhar a beleza do conteúdo. Perderam-se as coleções de contos semelhantes aos das Mil e uma noites, que um livreiro iraquiano do século X, Ibn al-Nadim, chamava histórias noturnas, uma vez que não se devia desperdiçar as horas do dia lendo literatura trivial. Os documentos oficiais que historiavam a Bagdá otomana juntaram-se às cinzas de seus mestres. Foram-se, por fim, os livros que sobreviveram à conquista mongol em 1258, quando o exército invasor jogou o acervo das bibliotecas no rio Tigre, construindo uma ponte de papel que enegreceu as águas com a tinta diluída. Ninguém mais poderá acompanhar os anos de correspondência que descreviam meticulosamente viagens aventurescas do passado e cidades maravilhosas perdidas no tempo. E ninguém mais consultará, ao menos naqueles exemplares específicos, grandes obras de referência como a Aurora para os cegos, de al-Qalqashandi, erudito egípcio do século XIV que, num dos catorze volumes, explicou em detalhe como formar cada uma das letras do alfabeto árabe, acreditando que nada que fosse escrito poderia jamais ser esquecido. 
   Muito embora bom número de objetos tenha sido devolvido ao Iraque nos meses seguintes à pilhagem, no final de 2004 ainda restava uma grande proporção de livros, documentos e artefatos roubados que ainda não haviam sido recuperados, apesar dos esforços da Interpol, da UNESCO, do ICOM (Conselho Internacional de Museus) e de várias entidades culturais ao redor do mundo. E muitos textos e objetos insubstituíveis foram simplesmente destruídos. "Feitas as contas, recuperou-se menos de 50% do que foi roubado", declarou o Dr. Donny George, diretor do Museu Arqueológico de Bagdá. "Mais da metade do material pilhado ainda está desaparecida, o que representa uma grande perda para o Iraque e para toda a humanidade." 
MANGUEL, Alberto. A biblioteca à noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 217 e 218.


 

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